quarta-feira, 24 de março de 2010

Ferrolho

Não era coisa rotineira. Sinceramente a primeira vez. E olha que em meus doze anos de “experiência” já passei por situações bastante incomuns. Como daquela vez em que um desesperado dono trouxe seu cachorro:

- Não quer mais falar meu nome, disse o cara.

Ora, é difícil convencer um rotwailler a falar quando não quer.

Essa minha profissão, misto de detetive e psicólogo bem poderia ser mais agitada. Picareta, sei bem, me alcunhavam as vizinhas tricoteiras mal amadas. Se fossem vinte netos mais novas resolveria essa questão.

Um dia, lá estava, sentado em meu escritório, na verdade um cômodo que também é quarto, sala, cozinha e cemitério. Tranquilamente olhava algumas fotos de uma cliente. Por mim já tinha encerrado o caso. Mas sabe como é. Alguns clientes são insistentes. Foi quando ela entrou e parou em minha frente como se olhasse para o nada.

- Oi.

- Oi.

Ela sorriu por um instante.

- Quem é o proprietário? Perguntou.

Nunca conheci o dono do cômodo - na verdade só tomava conta.

- Pois não? Em que posso ajudar?

- Não sei. Estava passando e vi a placa. Fiquei curiosa.

- Ah! O letreiro. Bem já era para ter substituído. Desculpe não trabalhamos mais com adivinhações. Ela riu.

- Vidas passadas – me disse.

- Como? Indaguei.

- Nada. Estou precisando conversar – começou a me olhar estranho.

- Você não é o ... Realmente não me era estranha, agora olhando com mais calma.

- Não, respondi sorrindo. Ela riu. A janela se abriu.

- Sente-se, por favor, só então percebi que ainda estava em pé.

- Poderia me ajudar? Perguntei.

- Sim - ela disse olhando fundo em meus olhos.

- Quem é você? Perguntei.

Riu gostoso mais uma vez.

- Você não é detetive?

- Não. Sou picareta. Rimos os dois ao mesmo tempo. De novo a janela.

- Estou atrás de uma historia, me disse, - uma história legal. Levantei.

- Tenho algumas interessantes aqui na estante...

- Quero a sua, respondeu rápido.

Ri sem graça.

- Não entendi.

- Poderia abrir o armário?

- Não sei. É perigoso – nunca abrira o armário. Sabe-se lá o que teria dentro.

Parei por um instante. Virei-me para ela. O mesmo sorriso.

- Qual seu nome mesmo?

- Pode me chamar de Dona.

- Com um ou dois “enes”?

- Escreve como fala, respondeu rindo.

- Muito bem senhora Dona.

- Apenas Dona – retrucou.

Caminhei até a janela. Tentei fechar. Estava emperrada.

- Este vento... falei meio sem graça pelo meu insucesso.

- Às vezes trás boas situações, falou olhando para fora.

Fechei as cortinas. A claridade me incomoda.

- Por que quer minha história?

- Não existe sua história. Estou aqui agora contigo então a história também é minha – respondeu, agora séria.

Tinha razão. As historias são pedaços, são caminhos que se cruzam. No momento estávamos na mesma história. O telefone. Ela atende.

- Alô! Um momento por favor - É pra você.

Dona me alcança o telefone. Era a cliente das fotos. Queria saber sobra uma história. Que dia.

- Minha senhora, não há mais nada a acrescentar ao caso. Se não estiver satisfeita procure outro profissional... Sim, não sou um bom profissional, mas pelo preço está ótimo, não? Tudo bem não precisa pagar. Só não difame, por favor!!!

Desligo o telefone. Nossa história acaba aqui, pensei.

Dona está sentada sobre a mesa. – o que tem em seu sorriso? Por que quer minha história? Será um caso muito complicado?

Ela começa a rir.

- Sou enigmática? Pergunta.

- Como?

- Todas essas perguntas.

- Como sabe em que estou pensando?

- Seu rosto é muito transparente – a cortina abre.

- Preciso ir.

- Por favor, fique um pouco mais – quase imploro.

- Eu volto.

Sai sorrindo, um sorriso triste agora. Quase choro. A porta se fecha, a janela bate, o telefone toca. Deixo tudo como está. O armário. Penso em abrir. Descubro então que não está trancado. Puxo a porta. Livros. Muitos livros. Não tem espaço pra mais nada. São livros de história. Livros velhos, empoeirados. Com exceção de um: “ A Dona História”. Novinho. Parece recém-impresso. Começo a folhear. Algumas páginas escritas, o resto em branco. Fecho o livro. Fecho o armário. Então é isso. Vou esperar ela voltar para completar o livro. Sento e olho para a porta.

Nem tenho noção do tempo que se passou. Nunca mais tive um cliente. Só a esperança de um dia preencher aquelas páginas.


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